Essa pergunta, à primeira vista pode parecer ofensiva – e vai ter muita gente criticando, ao argumento de que a ANVISA é indispensável à saúde pública, que serve para prevenir e proteger a população contra abusos no mercado de saúde, dentre outros.
E nós não discordamos disso, pelo contrário, nossa opinião converge no sentido que a existência da ANVISA é necessária.
Contudo, ao longo do tempo, desde que foi criada, a ANVISA se tornou uma espécie de “Leviatã” regulatório, que concentra todo o poder em torno de si, ordenando todas as decisões da sociedade na sua área de atuação, e eu explico o porquê.
No afã de regulamentar mais, para poder regulamentar ainda mais, frequentemente a ANVISA invade competência reservada a Lei em sentido estrito, usurpando a competência legislativa do Congresso Nacional.
Dezenas são os casos de ilegalidade e abuso, a maioria deles violando garantias constitucionais de livre iniciativa e de livre exercício do trabalho. Tanto é verdade que correm contra a autarquia um sem número de mandados de segurança e outros procedimentos judiciais.
O mais recente desmando da ANVISA diz respeito aos testes de glicemia capilar em farmácias e drogarias.
Em maio de 2023, com efeitos a partir de primeiro de agosto de 2023, a ANVISA teoricamente liberou a realização de exames laboratoriais remotos em farmácias e drogarias, com uso de equipamentos para diagnóstico in vitro e a supervisão de laboratórios centrais.
Festejada pelo mercado farmacêutico, a RDC nº. 786 de 2023 a princípio representaria um avanço na capilarização do SUS, permitindo que as mais de 90.000 farmácias do Brasil passassem a realizar testes laboratoriais, ampliando o acesso da população, principalmente da classe menos abastada, a exames laboratoriais.
Entretanto, como nada vem que vem da ANVISA facilita a vida do cidadão e das empresas, o texto da RDC nº. 786/2023 revogou expressamente dispositivos da RDC nº. 44/2009, justamente aqueles permitiam a realização desse tipo de teste em farmácias e drogarias.
Afora isso, os requisitos para que uma farmácia ou drogaria possa prestar o serviço são tantos e tão absurdos, que 99,9% dos estabelecimentos do país possuem condições de adequação, favorecendo apenas as grandes redes. E não são todas as grandes redes que conseguirão se adequar!
O que era para ser ampliado, acabou se tornando inócuo diante da exacerbada regulamentação da autarquia.
Em meio aos festejos da liberação dos exames, pouca gente se deu conta da revogação do §2º do art. 69 e do art. 70 da RDC nº. 44/2009.
Já há relatos de que em várias localidades do país, a Vigilância Sanitária já está notificando farmácias que prestam o serviço de medição de glicemia.
Glicemia em farmácias
O diabetes é uma doença crônica que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2021, aproximadamente 422 milhões de adultos viviam com diabetes, e estima-se que esse número cresça nos próximos anos.
Diante dessa realidade preocupante, a importância da prevenção e do controle da doença torna-se cada vez mais relevante.
Nesse contexto, a realização de testes de glicemia em farmácias tem mostrado uma abordagem conveniente e essencial para a saúde pública.
As farmácias desempenham um papel crucial na prestação de cuidados de saúde à comunidade.
São locais de fácil acesso e frequentemente abertos em horários flexíveis, o que os torna acessíveis para a maioria das pessoas.
Essa disposição é especialmente importante para os indivíduos que têm dificuldade em encontrar tempo para visitar clínicas ou hospitais.
Ao oferecer serviços de teste de glicemia, as farmácias permitem que os pacientes monitorem seus níveis de glicose de forma rápida e eficaz. O procedimento é simples e pode ser realizado por profissionais de saúde treinados nas próprias instalações da farmácia, o que minimiza o tempo de espera e agiliza o atendimento.
Isso sem falar no acompanhamento de profissionais de farmácia no local.
A obtenção de testes de glicemia em farmácias desempenha um papel importante no rastreamento e diagnóstico precoce do diabetes.
O diabetes tipo 2, em particular, é frequentemente assintomático em suas fases iniciais. Portanto, muitas pessoas podem não estar cientes de que têm a doença que complicações graves surjam.
Com a possibilidade de fazer o teste de glicemia de forma rápida e acessível em farmácias, os indivíduos com fatores de risco, como histórico familiar de diabetes, obesidade ou estilo de vida sedentário, podem identificar precocemente a doença e procurar tratamento adequado.
Essa abordagem é fundamental para reduzir o impacto do diabetes e suas complicações na saúde pública.
Além de fornecer os testes, as farmácias também desempenham um papel essencial na educação em saúde e na autogestão do diabetes.
Profissionais de saúde nas farmácias têm a oportunidade de orientar os pacientes sobre a importância de controlar os níveis de glicose, explicar os resultados dos testes e fornecer informações sobre hábitos alimentares saudáveis, atividade física e uso adequado de medicamentos.
Essa abordagem educacional é fundamental para capacitar os pacientes a assumir o controle de sua saúde e adotar medidas preventivas para evitar complicações associadas ao diabetes, como problemas cardíacos, neuropatias e problemas renais.
Outro benefício significativo dos testes de glicemia em farmácias é o acompanhamento contínuo da doença.
Pacientes com diabetes precisam monitorar regularmente seus níveis de glicose para ajustar o tratamento conforme necessário.
O acesso a testes de glicemia nas farmácias permite que esses pacientes realizem verificações frequentes sem a necessidade de visitas médicas constantes.
Essa abordagem de monitoramento contínuo também é valiosa para médicos e profissionais de saúde, pois oferece dados em tempo real sobre a evolução do diabetes em seus pacientes. Isso permite uma melhor compreensão do quadro clínico do paciente e da tomada de decisões mais pesadas sobre a terapia.
Os dispositivos da RDC nº. 44/2009 que foram revogados pela RDC nº. 786/2023 prescreviam o seguinte: a) “o parâmetro bioquímico cuja aferição é permitida nos termos desta Resolução é a glicemia capilar.”; b) “as medições do parâmetro bioquímico de glicemia capilar devem ser realizadas por meio de equipamentos de autoteste”; e c) “a aferição de glicemia capilar em farmácias e drogarias realizadas por meio de equipamentos de autoteste no contexto da atenção farmacêutica não é considerada um Teste Laboratorial Remoto – TLR, nos termos da legislação específica.”
Segundo o entendimento da ANVISA, com a revogação expressa dos dispositivos citados, os testes de glicemia em farmácias temos algumas consequências práticas: a) os testes de glicemia capilar estão proibidos para farmácias que não se adequarem aos requisitos da RDC nº. 786/2023, que representam 99% das farmácias do Brasil; b) apenas pressão arterial e temperatura corporal podem ser realizadas; e c) a realização dos testes de glicemia em farmácias, pasmem, agora são considerados como testes laboratoriais remotos ou TLR’s.
A atitude da ANVISA nitidamente vai na contramão do interesse público e social. Apenas por isso a RDC nº. 786/2023 já seria inconstitucional no ponto, por violar os princípios da livre iniciativa, do livre exercício do trabalho, da proporcionalidade, da legalidade e da razoabilidade.
A decisão da ANVISA, diga-se, sem qualquer respaldo científico ou técnico restringe o direito à saúde, principalmente dos menos abastados, podendo ser comparado a um ato de abuso de poder sem o menor sentido.
Ao passo que, agora, com a revogação dos dispositivos citados, não há RDC permitindo a realização dos serviços, também não RDC alguma proibindo a medição de glicemia em farmácias e drogarias, de forma que a atitude das Vigilâncias Sanitárias locais de notificar os estabelecimentos constitui ato coator passível de Mandado de Segurança por violar frontalmente o princípio da legalidade expresso no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
A proporcionalidade e a razoabilidade restaram violadas por vários motivos, senão vejamos.
Nos parece contraditório que um paciente possa realizar um teste de glicemia capilar sozinho em sua casa, mas não o possa numa farmácia, ambiente controlado, desinfetado e com a orientação de um farmacêutico, sendo que em ambas as hipóteses o teste é realizado com uma simples punção no dedo para retirada de uma mísera gota de sangue.
É ainda mais contraditório quando verificamos que farmácias e drogarias continuam podendo realizar a aplicação de medicamentos injetáveis, cuja realização, sem qualquer sombra de dúvidas, é mais invasiva do que uma simples punção no dedo.
Por óbvio, a ANVISA é um órgão regulatório que baseia (ou deveria) suas decisões em aspectos científicos. Mas, onde reside a ciência na proibição de um teste de glicemia capilar em farmácias que até ontem era permitido e continua sendo permitido em regime domiciliar de autoteste, em condições sanitárias não controladas? A ANVISA precisa responder isso urgentemente.
Desse modo, ao limitar a realização de determinado serviço em drogarias e farmácias sem qualquer estudo prévio do impacto ou do prejuízo à saúde dos cidadãos, a ANVISA violou preceitos constitucionais consagrados.
Caso sua farmácia ou drogaria seja autuada ou notificada pela Vigilância Sanitária, procure um advogado de sua confiança, preferencialmente com experiência nas áreas do direito médico-hospitalar e farmacêutico.
Sucesso!
Assista nosso vídeo sobre o assunto: