Antes de adentrarmos na parte jurídica desse artigo, é importante definirmos o que é um “curativo”, suas principais funções e tipos básicos.
“Curativos” podem ser definidos como aplicações locais em feridas, cortes, machucados, incisões cirúrgicas etc., de antissépticos, medicamentos e coberturas protetoras para limpar, tratar, resguardar de agentes infecciosos e propiciar a cicatrização e a cura.
Os objetivos de um curativo podem ser variados e dependem do tipo, severidade e localização da ferida onde são aplicados.
Farmácia pode fazer curativos
Em primeiro de setembro de 2022, o Ministério da Saúde editou a Portaria MS nº. 531/2022, que altera atributos de procedimentos da Atenção básica, na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS.
Referida Portaria incluiu o Farmacêutico como um dos profissionais de saúde autorizados a realizar “curativos simples” e coleta de material para exames de “Papanicolau”, isso no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Poucos dias depois, em seis de setembro, o Ministério da Saúde revogou a referida portaria.
Imediatamente dezenas de artigos e publicações, principalmente oriundas do COFEN e do COREN (Conselho Federal e Regional de Enfermagem, respectivamente) alardearam que farmácias e drogarias não mais poderiam realizar curativos simples.
Mas até onde essa informação é correta juridicamente? É o que vamos analisar a seguir.
A RDC/ANVISA nº. 44/2009 prevê que, além da dispensação, podem ser prestados serviços de atenção farmacêutica e perfuração de lóbulo auricular.
A prestação de serviço de atenção farmacêutica compreende a atenção farmacêutica domiciliar, a aferição de parâmetros fisiológicos e bioquímico e a administração de medicamentos.
Existem muita discussão se a realização de curativos com utilização de medicamentos tópicos estaria incluída no conceito de “administração de medicamentos” ou não.
Fato é que a RDC 44 não proibiu expressamente a realização de curativos por farmacêuticos, apenas mencionando que todo serviço prestado deve ser precedido por licença sanitária regular.
Trocando em miúdos, teoricamente, é aplicável ao caso o princípio da legalidade, ou seja, de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Em outras palavras, os indivíduos tem ampla liberdade para fazerem o que quiserem, desde que não seja um ato, um comportamento ou uma atividade proibida por lei.
A Lei nº. 13021/2014 praticamente repetiu o texto da RDC 44 da ANVISA.
As atribuições privativas do Enfermeiro estão reguladas na Lei nº. 7498/1986 e são as seguintes:
– direção do órgão de enfermagem integrante da estrutura básica da instituição de saúde, pública e privada, e chefia de serviço e de unidade de enfermagem;
– organização e direção dos serviços de enfermagem e de suas atividades técnicas e auxiliares nas empresas prestadoras desses serviços;
– planejamento, organização, coordenação, execução e avaliação dos serviços da assistência de enfermagem;
– consultoria, auditoria e emissão de parecer sobre matéria de enfermagem;
– consulta de enfermagem;
– prescrição da assistência de enfermagem;
– cuidados diretos de enfermagem a pacientes graves com risco de vida;
– cuidados de enfermagem de maior complexidade técnica e que exijam conhecimentos de base científica e capacidade de tomar decisões imediatas.
Como se vê, não há, dentre as funções privativas dos profissionais de enfermagem, a realização de curativos, sendo a expressão “maior complexidade técnica e que exijam conhecimentos de base científica e capacidade de tomar decisões imediatas” extremamente vaga.
O COFEN e os COREN’s se arvoram, ainda, na Resolução COFEN nº. 567/2018, que aprovou o Regulamento da atuação da Equipe de Enfermagem no Cuidado aos pacientes com feridas.
Não obstante, o Conselho Federal de Farmácia também possui uma resolução tratando do assunto, como veremos a seguir, destacando que uma resolução do COFEN não é hierarquicamente superior a uma resolução do CFF e vice-versa.
De outra banda, as atividades privativas do Farmacêutico estão previstas na Decreto nº. 20377/1931:
– a manipulação e o comércio dos medicamentos ou remédios magistrais;
– a manipulação e o fabrico dos medicamentos galênicos e das especialidades farmacêuticas;
– o comércio direto com o consumidor de todos os medicamentos oficinais, especialidades farmacêuticas, produtos químicos, galênicos, biológicos, etc., e plantas de aplicações terapêuticas;
– o fabrico dos produtos biológicos e químicos oficinais;
– as análises reclamadas pela clínica médica;
– função de químico bromatologista, biologista e legista.
A exemplo dos Enfermeiros, não há, dentre as funções privativas dos profissionais de farmácia, a realização de curativos.
O CFF e os CRF’s, por sua vez, justificam a permissão para realização de curativos na Resolução CFF nº. 499/2008, que dispõe sobre a prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias, e dá outras providências, prevendo expressamente a realização de curativos de pequeno porte.
Diante desse imbróglio, como conciliar as divergências e omissão legislativas? É o que veremos a seguir.
Antes de concluirmos, respondendo se uma farmácia pode fazer curativos, é necessário um esclarecimento acerca da revogada da Portaria nº. 531/2022 do Ministério da Saúde.
A referida portaria revogada somente se aplicava no âmbito do Sistema Único de Saúde, não sendo aplicável a farmácias e drogarias privadas.
Desse modo, sua revogação não proíbe automaticamente farmacêuticos de estabelecimentos privados de realizar curativos.
O primeiro ponto a ser levado em consideração é que não há dispositivo expresso de lei ou resolução da ANVISA que proíba o profissional de farmácia de realizar curativos, aplicando-se o princípio da legalidade.
No entanto, a Resolução CFF nº. 499/2008, plenamente aplicável aos farmacêuticos, prevê uma limitação, ou seja, qual seja, de que a realização de curativos deve limitar-se a curativos de pequeno porte.
Continuando, uma resolução do COFEN não é hierarquicamente superior a uma resolução do CFF e vice-versa, razão pela qual uma eventual vedação à realização de curativos por outros profissionais de saúde por parte do COFEN não possuiria validade, sendo que o inverso também é verdadeiro, ou seja, o CFF não poderia emitir nenhuma resolução nesse sentido.
Enquanto não houver uma regulamentação clara sobre qual profissional de saúde pode ou não realizar pequenos curativos, entendemos que principal regra a ser aplicada ao caso é o bom senso.
A fim de evitar problemas éticos e com a Vigilância Sanitária, recomendamos o seguinte:
– apenas realize curativos em sua farmácia ou drogaria se seu estabelecimento possuir licença sanitária para esse fim;
– caso o paciente possua prescrição ou recomendação médica para realização dos curativos em clínicas, estabelecimentos médico-hospitalares, enfermeiros ou por empresas de home care, não realize o procedimento;
– tenha um manual de curativos, um procedimento operacional padrão e um termo de consentimento específicos para curativos, mantendo esses documentos na sala de prestação de serviços farmacêuticos;
– entenda como “curativos de pequeno porte” apenas aqueles destinados a feridas não abertas e não infectadas decorrentes de arranhões, contusões ou pequenos cortes que não demandem aproximação de bordas através de pontos cirúrgicos;
– não entenda como “curativos de pequeno porte” aqueles destinados a feridas abertas e infectadas ainda que decorrentes de arranhões, contusões ou pequenos cortes, que demandem aproximação de bordas através de pontos cirúrgicos, punções, drenagens, desbridamento ainda que leve, remoção de pelos e outros;
– em sendo o curativo decorrente de lesão que ainda não passou por avaliação médica, após o procedimento encaminhar o paciente para o serviço de atendimento médico-hospitalar mais próximo, devendo constar essa orientação no termo de consentimento ou no prontuário do paciente;
– em caso de prestação de eventual atendimento de primeiros socorros, principalmente se houver objetos encravados, o procedimento deve limitar-se a controlar hemorragias e a estabilizar a lesão, devendo ser acionado o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
Sucesso!
Assista nosso vídeo sobre o assunto: